"Pedro e João estavam indo ao templo na hora da oração, às três da tarde, enquanto era carregado um homem, coxo de nascença, o qual todos os dias punham à porta do templo, conhecida como Formosa, para pedir esmolas aos que entravam. Quando viu Pedro e João, que iam entrando no templo, pediu que lhe dessem uma esmola."

Diante de nós estão todas as histórias, e todas contam a mesma história: heróis são gente que venceu a morte e demonstrou (ou encontrou) nisso o seu valor. Ao voltar ao mundo pela porta da ressurreição literal (ou, dependendo da história que está sendo contada, metafórica), o herói encontrará um novo mundo, que é o mesmo da experiência cotidiana mas que será para ele inteiramente diverso, porque o herói venceu o medo e o desejo que paralisam e condicionam os demais seres humanos. Nesta vida que é a nossa ele habitará o fim do mundo, e trará consigo o elixir com o qual será capaz de estender agora mesmo, aos que ainda não morreram e ressurgiram como ele, os dons miraculosos que recebeu. Fazendo com que se identifiquem com sua morte e sua ressurreição (isto é, com que reconheçam e participem da sua vitória), distribuirá entre meros mortais o fim do mundo e seu elixir.

Esses, que são traços essenciais da vitória do herói universal segundo Joseph Campbell, são também os argumentos do discurso de Pedro no Pentecostes (Atos 2:14-36) em favor do caráter universal da vitória de Jesus. E são esses mesmo os elementos que explicam o conteúdo metafórico dos conceitos neotestamentários de batismo, fim do mundo e Espírito Santo.

O batismo, que em comum como a morte só acontece uma vez, representa a morte do eu para o medo e o desejo, que juntos limitam e oprimem todos os homens. O fim do mundo aponta na verdade para o começo de outro; é o novo nascimento para um domínio ou reino em que as novas liberdades adquiridas e seus respectivos desafios – o dom divino de “fazer novas todas as coisas” no reino de Deus – entrarão em choque com aquilo que sempre existiu. E o Espírito Santo é o elixir da cura, do rejuvenescimento e da transformação, que é derramado pelo herói vitorioso sobre todos que abraçam a sua vitória; é o potencial e a chama de um novo mundo e do incêndio do reino de Deus.

A história da igreja começa, portanto, onde as histórias terminam, com a vitória irresistível do herói e a distribuição de seu elixir.

E começa assim: Pedro e João, que eram homens comuns e pescadores, mergulharam na morte de seu amado campeão e sentiram no peito o sopro vertiginoso de seu elixir, e são agora heróis e gigantes. Caminham pelo mundo da vida cotidiana como deuses que palmilham uma herdade outrora perdida. É o velho mundo de sempre e nele algumas coisas não mudaram – seguem juntos para o mesmo templo para a mesma oração vespertina – mas não são mais quem eram, e portanto nada mais será como era.

São ainda meros homens, mas sabem-se agora habitantes do fim do mundo e portadores do divino elixir. Como mudaram por dentro, a realidade transformou-se em favor deles, e nisso alcançaram uma nova mobilidade e uma formidável libertação. Olharam nos olhos a morte e foram beijados pela vida. Nada têm a perder, pelo que nada pode se colocar no seu caminho.

Mas se o batismo e a apropriação espetacular do Espírito são os demarcadores visíveis da nova condição desses precursores do reino, não devemos perder de vista que o que patrocinou a sua transformação interior – a sua conversão – foi o toque invisível, inesperado e divino do perdão dos pecados e a admissão na comunidade do reino.

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Tolkien sustentava que o evangelho é um conto de fadas que tem a particularidade de ser também uma história real. Para ele era muito natural encontrar ecos da boa nova nas narrativas e lendas de todas as culturas e tradições, e era ainda mais natural que o evangelho a todas refletisse e sobrepujasse. Embora não encontre como discordar de Tolkien neste e em outros aspectos, tomo por evidente uma grande diferença de envergadura e de aspiração literária entre o evangelho e as fábulas, mesmo sem que saíamos para fora da narrativa a fim de medir a sua conformidade com a realidade.

Porque nas lendas basta que o herói (e, em alguns casos, algum companheiro seu) alcancem a vitória sobre a morte e o acesso ao divino elixir; mesmo quando toda a comunidade é beneficiada pela vitória, permanece muito clara a distinção entre o herói, o notável, e os indistintos mortais que não compartilharam da sua aventura e de seus méritos. Muito mais ambicioso em termos literários e morais, o evangelho postula uma vitória que ocasione a transformação em heróis de todos dentro da comunidade, bem como a distribuição universal e igualitária do divino elixir. Em grande parte, a boa nova consiste precisamente nisso: a anunciação de um reino em que todos se tomem por igualmente merecedores da aceitação de todos e da identificação completa com o herói original. Para que todos sejam um.

Que Jesus tenha trilhado exemplarmente a trajetória do herói é relativamente fácil de demonstrar; que os doze tenham sido transformados para sempre pelo seu exemplo é concebível; mas de que forma a narrativa espera que a vitória de Jesus se mostre transformadora para os que não terão a oportunidade de serem submetidos à sua influência como personagem de carne e osso? Como transformar, sem que experimentem o bafejo literal da morte e as cores da cruz, homens em testemunhas?

Esta é, claramente, uma das questões centrais do livro de Atos, e a essência da resposta está em duas provisões articulada pelo próprio Jesus: o anúncio do perdão dos pecados e a acolhida sem trâmites na comunidade do reino.

Primeiro há o perdão dos pecados, e do nosso posto no final de um corredor polonês de dois mil anos de pregação será difícil apreender quão formidável pareceu a notícia quando proferida pela primeira vez. Para seus primeiros ouvintes, o anúncio do perdão dos pecados como possibilidade independente do regime de sacrifícios representava essencialmente uma coisa: num único gesto gratuito e sem necessidade de repetição, todos tornavam-se de repente aceitáveis diante de Deus.

Nenhuma notícia era mais inesperada, nenhuma decisão mais graciosa e fortuita. Nada era mais escandaloso, nada mais revolucionário. O véu desfigurante da culpa podia ser levantado de todos os rostos, e todos podiam olhar-se no espelho como que pela primeira vez. Todos podiam perscrutar perplexos um horizonte em que nada estava determinado, um futuro em que nada estava de antemão interrompido ou irreversivelmente maculado pela nota promissória do pecado.

Era um mundo em que ninguém havia pisado desde Adão, mas Adão e Eva viviam sozinhos; ninguém sabia ainda antever o que representaria uma sociedade inteira de gente sem culpa, um reino vasto e igualitário de alforriados.

A absolvição dos pecados também colocava por terra a diferença de mérito entre uma pessoa e outra, e abria dessa forma espaço para o segundo grande escândalo, o da hospitalidade. Os precursores do reino apenas começavam a apreender as consequências da implantação no mundo real de uma comunidade irrestritamente inclusiva, mas – como dá conta o episódio do Pentecostes – todos os submetidos à sua influência iam sendo transtornados pelo vento da sua glória.

Essas duas coisas tomadas juntas – a absolvição das faltas tomada como fato consumado e o espírito de acolhida incondicional – de fato são o Espírito de Jesus agindo nos seus seguidores, em favor do mundo e em nome de Jesus. Juntas formam o divino e revolucionário elixir, o unguento com que os discípulos tratam o próprio coração e que estão continuamente prontos a administrar em favor do próximo.

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Os discípulos são, por tudo isso, habitantes recém-chegados ao fim do mundo. E será preciso repetir: o fim do mundo é pintado nos evangelhos como evento terrível e calamitoso porque é um encontro irreversível com o REAL. Quem atravessou o limiar do batismo (o limiar da morte) se verá obrigado, dali em diante, a ver o mundo como ele é e a identidade pessoal como ela é.

Ao contrário do resto de nós, que enxerga o outro como uma ameaça e uma ruptura no tecido da integridade, os habitantes do reino verão o outro como uma extensão de si mesmos e de Deus.

Nós, homens naturais, somos treinados a enxergar no outro apenas a maçante infelicidade que representa para ele não ser nós mesmos; tudo que vemos no próximo é o infortúnio que deve ser para ele não compartilhar da nossa integridade e não fazer parte do nosso grupo. Pensamos “pobre aleijado”, “pobre mendigo”, “pobre menina rica”, e em tudo isso o que fazemos é apenas celebrar a nós mesmos e o que vemos de admirável em nossa condição. O que consegue efetuar essa perversa compaixão é apenas consolidar a barreira de segurança entre nós e os demais.

Os cidadãos do reino, em contraste, habitam uma realidade em que “quando o fizestes ao menor dos meus irmãos, a mim o fizestes”, um domínio em que é vital amar o próximo como a si mesmo – um mundo, portanto, em que a identidade pessoal só é consolidada, muito paradoxalmente, no abraço do outro.

Esses que conquistaram exemplarmente o medo e o desejo, segundo o trajeto aberto por um único precursor mas sob a égide de uma comunidade sempre crescente, representam uma nova estirpe de herói. Nunca estarão sozinhos, porque enxergam o mesmo espírito no espelho e nos olhos da sua comunidade. Nada os impedirá de amar o próximo com minucioso rigor, porque estão convictos de que no próximo está oculto o mestre que almejam servir. E, em conformidade com as luzes do seu mestre, o acaso nunca os pegará de surpresa, porque estarão incessantemente disponíveis para o momento.

A homens naturais o acaso apavora, porque ele denuncia o fato de que só estamos prontos para oferecer respostas condicionadas. Não temos espaço de manobra para as contingências e as tememos como ao diabo, porque sabemos que elas revelarão invariavelmente as nossas falhas. Os homens e mulheres do reino, no entanto, despiram-se das condutas acessórias e de tudo que pode afastá-los do Não-condicionado; nada tem a perder, pelo que nada pode colocar-se no seu caminho sem ser despedaçado pela sua integridade, ou ser irresistivelmente restaurado por ela.

E, enquanto dois deles entravam no templo (onde estiverem dois) estavam por acaso trazendo um aleijado que pedia esmolas junto a uma das portas.

Ideias subversivas de Paulo Brabo.