Não existe religião sem impedimentos. Nesse sentido, o cristianismo fez escola, pois, quando não adicionou, fortaleceu no vocabulário de (quase) todas as religiões um substantivo sinônimo de perdição (devido à mitologia da queda): pecado.

Nietzsche, que não se conteve com o detrimento da vida em razão de uma possível “outra vida” que os cristãos de sua época tanto pregavam, asseverou que o pecado é uma invenção dos religiosos para que nunca lhes falte sustento – “ (…) o sacerdote vive dos pecados, ele precisa que se peque”- e que não há nem outra vida, muito menos essa certa perdição anunciada pelos fiéis da cristandade (F. Nietzsche, em O Anticristo, cap. 26). Em nome de um patrulhamento religioso, o cristianismo criou uma forma de dependência. 

No entanto, por mais que a assertiva de Nietzsche tenha sido muito bem construída, tendo como premissa fundamental o comportamento dos supostos discípulos do Cristo, existe sim uma perdição em si mesmo. O que significa dizer, que independentemente de como se chame referido desvio, isto é, pecado, ilusão, erro etc., existem ações do homem contra si ou contra outrem, que atingem o coração de Deus, não por serem potencialmente anti-Deus, mas por serem exatamente anti-homem. Pensando bem, Nietzsche indignara-se com um pecado comum entre os religiosos, chamados por estes de fé: matar essa vida para ressuscitar além dela. Cúmulo da alienação.

Na catequese, aprendi que é pecado procurar os textos bíblicos pelo índice de páginas. Não se deve ler a Bíblia por outro modo que não seja pelo método: livro, capítulo e versículo, dizia a catequista.  Convertido ao movimento evangélico, ainda adolescente, aprendi na EBD (Escola Bíblica Dominical) que pecado é mulher usar calça comprida, homem usar brinco e faltar aos cultos. Um pouco mais maduro, no grupo de jovens da igreja, aprendi que pecado é transar antes do casamento, masturbar-se (ninguém se masturba pensando na mãe, na avó ou nas cataratas do Iguaçu, defendiam os líderes), ouvir música do mundo (de uma fonte de água não podem sair dois tipos de água, ensinava a liderança dos jovens) ingerir bebida alcoólica, jogar futebol e ir ao cinema. No curso de teologia, os mestres enfatizaram que pecado é uma herança dos dois primeiros humanos que existiram: Adão e Eva. Graças a Adão e Eva, a terra é maldita. Chamado para compor a liderança da igreja, ouvia em todas as reuniões: pecado é não “dizimar” (“obreiro de verdade investe na obra!”, exclamava o presidente do ministério da igreja). Saí da igreja e do movimento evangélico, propus-me a reler as Escrituras e qual não foi minha surpresa: eu sou o meu pecado.

Pecar não é simplesmente cometer um impropério moral, mas é anular, em pequenas doses, aquilo que há no homem de peculiar ante os outros seres: a humanidade. É perder a sensibilidade, o caráter, o respeito a si e a outrem, é cometer um suicídio, é morrer aos poucos, é enveredar-se na tola perdição que o Raboni de Nazaré taxou de “perder a alma”.

Mas, por incrível que pareça, a Nietzsche principalmente, a Bíblia (especialmente o Novo Testamento), entre as diversas escrituras sagradas, é o livro que trata com mais leveza o saneamento desse desvio: o amor é o re-erguimento do ser. Nas palavras de Paulo, apóstolo, tão combatido por Nietzche e outros filósofos, pecar é inevitável, mas a experiência da encarnação é a consolação para nossos conflitos. Não há condenação para os que adotaram o estilo de vida de Jesus; não há pendências a serem resolvidas através da religião. O perdão, ou seja, o re-encontro do homem consigo, através do arrependimento, é uma gratuidade divina

A lição evangélica (isto é, do evangelho) é que existe um estilo de vida suficientemente bom, e não isento de tentações, que sai da boca de Jesus como uma lei ante à qual qualquer outra deve se curvar e que, sobretudo, é o sentido de sua encarnação: amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.

É inevitável viver sem pecar, mas Deus, em Cristo, reconciliou-nos consigo e conosco. Não há o que temer. Amém.

Will do Celebrai.